2 de junho de 2009

O Senhor do Tempo

O fogo estava alto e rapidamente se aproximou do banheiro onde as crianças se escondiam.
Ícaro, o menor, gritava desesperadamente para o irmão fazer alguma coisa.
Samuel, por sua vez, sentado na privada, olhava passivamente a fumaça preta entrando pelo vão da porta.
Então ele teve a idéia.
Ainda dormia quando passou a mão pelo corpo para se coçar. Estava encharcado de suor. Abriu os olhos assustado, pensando ter urinado, quando mirou o forte clarão vindo do corredor. Desceu do beliche, foi até a porta e acordou o caçula aos gritos.
Fogo.
Querendo fugir, tentaram, primeiramente, sair pela sala.
Fogo.
Recuaram.
Pensaram em sair pelos fundos. A porta da cozinha, única passagem, porém, estava bloqueada.
Não havia saída, aparentemente.
Ao fim do corredor, viram o banheiro ainda intacto como se alguma força dos céus protegesse aquele local.
Trancaram-se lá os irmãos.
Ao adentrar no cômodo, o pequeno estirou-se no chão em prantos. Gritava por sua mãe.
Samuel sabia que ela não viria.
Ignorando os próprios pensamentos, começou a acompanhar Ícaro nos berros.
Mas Samuel sabia que ela não viria.
A garganta secou e o calor cresceu.
Sufocava.
Olhou para a parede em diagonal e acima da descarga estava a janela.
É muito alto para pular, mas posso fazer entrar mais ar, pensou.
Abriu as gavetas debaixo da pia procurando algo duro para arremessar no vidro. Entre caixas de remédio, lâminas de barbear, papel higiênico e toalhas, um secador de cabelo foi a ferramenta mais apropriada que encontrou.
Subiu na borda da privada enquanto Ícaro esperneava.
Bateu.
Nada.
O que está fazendo, perguntou o menor.
Explicou suas intenções.
Foi lembrado de que apanhou de cinta depois de estourar a janela do quarto com uma bola de futebol.
Não se importou.
Bateu.
O aparelho rachou.
Samuel pensou em desistir, mas olhou o caçula deitado: chorava tanto que o nariz escorria, verde e pegajoso. Chicoteava as pernas no chão e puxava os cabelos de medo.
Será que aos quatro anos temos consciência suficiente para saber que estamos prestes a morrer?
Tentando eliminar idéias ruins da cabeça, Samuel golpeou novamente o vitrô.
A parte superior do aparelho abriu de vez. Parafusos e pedaços de plásticos pularam para os lados.
Observando a fresta que havia entre as vidraças, Samuel foi encarado pelos olhos amarelos de seu gato sentado no galho da árvore.
Ao menos, Bu conseguiu escapar, pensou.
Fitou o animal lamber tranquilamente os pêlos e sentiu inveja do felino: ele, sem dificuldades, passaria por entre as grades de segurança da janela.
Acordou dos devaneios com o som de algo caindo no interior da casa.
Segurando o aparelho pela parte quebrada, começou a desferir golpes com o cabo.
Quatro pancadas e o estrondo de cacos partidos.
Desceu da privada e constatou que a fumaça estava mais intensa e o calor mais forte: trabalho em vão.
Cansado de chamar pela mãe, Ícaro cobrava atitudes do irmão.
Faça alguma coisa, dizia.
Na inocência, o mais velho abriu a torneira e de lá ainda saía água. Lembrou-se da história do Pássaro e o Dedal que ouviu na escola.
Resolveu fazer algo parecido.
Deixou a água escorrendo e foi abrir a porta do cômodo.
Faça alguma coisa, dizia o mais novo.
Encostou na maçaneta e queimou a mão.
Agitou os dedos no ar para aliviar a dor. Seria impossível abrir a porta agora.
Uma lágrima escorreu.
Faça alguma coisa, dizia o mais novo.
Outra lágrima escorreu.
Vencido e sem saber como agir, Samuel sentou-se na privada e olhou a fumaça entrando pelo vão da porta.
Começou a observar o nariz sujo do irmão e sentiu os olhos tremerem: pranto de dor causado pela impotência diante de algo inevitável.
Então, surgiu a idéia.
- Ícaro?
- Sim?
- Você confia em mim?
- Por que?
- Confia em mim?
- Confio.
Aproximou-se do irmão, deitou-se ao seu lado e o abraçou forte.
Disse que queria que Ícaro fechasse seus olhos.
Ele obedeceu.
Já lhe contei certa vez que eu era o Senhor do Tempo, perguntou.
Não, não havia contado.
- Pois bem, então, fique sabendo que sou o Senhor do Tempo e vou acabar com esse fogo todo.
- Enlouqueceu?
- Não, juro a você. Faça-me o favor de não abrir os olhos, tudo bem?
- Não.
- Não quer que o incêndio acabe?
- Quero.
- Então, não abra os olhos em hipótese alguma.
Sem entender, o caçula assentiu.
Samuel respirou fundo. Com um tom grave na voz, ordenou que as nuvens obedecessem a ele, o Senhor do Tempo, e começassem uma tempestade forte.
Estralou os dedos.
Trovões romperam no ar e três segundos depois caíram os primeiros pingos no telhado.
Viu um sorriso aparecer no rosto do irmão conforme a chuva fortalecia-se lá fora.
- Está chovendo, Samuel!
- Sim, está. Não lhe disse que eu era o Senhor do Tempo?
Colocou a mão sobre os olhos do pequeno para que evitasse abri-los. Com um tom mais grave do que na outra vez, Samuel ordenou aos ventos que, com toda força, começassem a correr levando tudo o que encontrasse no caminho.
Assoprou.
Uma pequena brisa cantou na janela quebrada. Um frio tocou o rosto dos meninos causando uma leve cócega.
Eu quero mais forte, gritou.
Respirou fundo e assoprou todo ar que havia em seus pulmões.
Veio o vendaval esperado.
O gato miou assustado e as folhas nas árvores balançaram-se com violência. As paredes da casa começaram a tremer: parecia que fossem ruir.
A primeira telha caiu no chão.
Sem muito demorar, veio a segunda;
A terceira;
E as demais.
Tudo tremia. Outro forte balançar de paredes e o telhado foi arrancado para longe.
Os pingos da chuva tocaram as faces dos meninos.
Iniciou-se o som do evaporar da água: o fogo foi sendo extinto.
Após sentir-se seguro, o Senhor do Tempo ordenou que toda a chuva e todo o vento cessassem. Feito sua vontade, beijou a testa do irmão e lhe assegurou que, finalmente, poderia abrir os olhos.
Ícaro, encantado, não acreditava no que via: o incêndio, de fato, foi exterminado. Ao redor, restavam apenas carvão e poças de água.
O que é você, anjo ou deus, perguntou com os olhos brilhantes ao seu irmão.
- Já disse, Ícaro, sou apenas o Senhor do Tempo!
Levantaram-se.
De mãos dadas, andaram em direção ao quintal enquanto o fogo começou a devorar seus pequenos corpos desfalecidos no chão do banheiro.

Ansiosas palavras

Palavras profanas provocadamente
Proferidas pelo prazer
Exageradamente exorbitadas
Em extremo excesso e eloqüência

Tentadoramente tatuadas
Tendo torrentes traduções
Trabalhosamente traçadas
Tateando tua tranca

Carenciadas carícias confundidas
Com contundantes coxas
Confidenciadas com carinho
Calando contidas calças

Audaciosas ascendências
Aspirando alucinar
A almejada amante
Ao alimentar-se ante à

Ânsia
Aumentada ânsia
Ânsia aumentada
Ânsia, ânsia, ââânsia!

Do mesmo rio

Quantos dias se foram por entre esses sinuosos rios que correm e se arrastam, que amam e que torturam. Por este rio que é tão só e tão sublime, tão suave e que nikofuji retrata pelo olhar simples, humilde e teimoso. Um olhar profundo escuro, que escorre segredo e teimosia numa quarta feira mais ou menos quente: Não tão quente, mas digna de um mergulho. Longe do caótico ritmo dos monofônicos timbres das máquinas, se despiu de toda a fumaça que exalavam as aborrecidas chaminés. Nu, imerso numa água que também não é pura, mas que traz consigo a inocência de quem não machuca, sem ser antes desafiada.
Um pé após o outro, respeitando a calma que tinha o rio naquelas cinco horas, e os pelos, de arrepio sentiam já um pouco do frio que passaram por aquelas águas na noite. O mais difícil, mergulhar o tronco, visto que as pernas finas já se afogavam no solo movediço destes rios selvagens, e mais ou menos rápido o corpo já estava por completo imerso na densidade gelada daquele rio tão azul escuro que não se via fundo. Finalmente a apreensão de sozinho mergulhar numa quarta feira brava que ficava cada vez mais mansa e azul, se foi.
Se Niko fosse uma cor, seria azul, se fosse um animal, provavelmente, ah..., nunca tinha pensado em ser um animal, se fosse uma planta (quantas bobeiras nos atormentam quando nos esforçamos pra não pensar em coisa alguma.), mas era como se por debaixo d’água sua mente também se transbordasse desta mesma água, e os pensamentos não mais obedientes, como de costume, seguiam correndo sem ordem, num fluxo desordenado e azul. O corpo pelado, sendo lavado pelo rio, sem destino sem rotinas, num suave flutuar, sem deveres de casa nem provas semestrais. Pelo menos nesta quarta, mais vale ser molhado que vestido.
Uma música, que não retorne nunca aos refrões, e Niko fechava seus olhos, repetindo o movimento exaustivamente repetido ao ver sua mão boiando nas piscinas por todos esses calejados dezesseis anos. Flutuar pelas ondas e marolas, deixando a memória, como uma aquarela se diluir nessa água, agora um pouco mais marejada. Os tênis já haviam ficado nas franjas dos rios, o uniforme já não mais fazia parte de nenhuma parte de Niko, As sensações que sentia na correnteza não foram tão fortes para descolar uma pálpebra da outra, e o corpo pequeno perante o movimento intenso do rio começava a parecer sujeito a todas as vontades do azul, sujeito a qualquer vontade desse, que mesmo assim parecia terno no trato com o corpo.
Quando, já satisfeito com aquela paz que o rio lhe trazia, Niko preguicosamente abriu seus olhos molhados, e se viu numa velocidade, relativamente alta boiando correnteza abaixo, e perguntou: Não se canse desta dança!


O rio então respondia: Qualquer dança que seja livre é digna de estourar encostas e barragens

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O dezenove barra dez é o meio que encontramos para circular nossas idéias por entre os mais diversos espaços sob a desculpa de estarmos fazendo arte. Pretendemos ser uma ponte entre a vontade de escrever e o desejo de ser lido, entre a imaginação e a escrita. Somos todos diretores, autores, apreciadores e críticos, porém nunca nesta mesma ordem. É nosso desejo instigar no leitor a vontade de escrever, a vontade de imprimir nas folhas uma marca peculiar, colorindo com novos tons o que nos define como homens. Não somos os únicos nessa cidade que sonham em ser, um dia, escritores, poetas, cronistas, roteiristas ou o qualquer outra coisa. Caso deseje o mesmo que nós, ou, simplesmente, tenha algo que queira ver circulando por aí, pedimos, por favor, que envie seu texto aos endereços eletrônicos colocados nas nossas últimas páginas. Precisamos que o leitor nos ajude a manter vivo esse veículo e alimente a próxima edição com seus amontoados de palavras. Vemos o dezenove barra dez como o primeiro meio de luta para alcançar nosso grande sonho de vida. Perguntamos a todos vocês se têm interesse em nos acompanhar...