2 de junho de 2009

O Senhor do Tempo

O fogo estava alto e rapidamente se aproximou do banheiro onde as crianças se escondiam.
Ícaro, o menor, gritava desesperadamente para o irmão fazer alguma coisa.
Samuel, por sua vez, sentado na privada, olhava passivamente a fumaça preta entrando pelo vão da porta.
Então ele teve a idéia.
Ainda dormia quando passou a mão pelo corpo para se coçar. Estava encharcado de suor. Abriu os olhos assustado, pensando ter urinado, quando mirou o forte clarão vindo do corredor. Desceu do beliche, foi até a porta e acordou o caçula aos gritos.
Fogo.
Querendo fugir, tentaram, primeiramente, sair pela sala.
Fogo.
Recuaram.
Pensaram em sair pelos fundos. A porta da cozinha, única passagem, porém, estava bloqueada.
Não havia saída, aparentemente.
Ao fim do corredor, viram o banheiro ainda intacto como se alguma força dos céus protegesse aquele local.
Trancaram-se lá os irmãos.
Ao adentrar no cômodo, o pequeno estirou-se no chão em prantos. Gritava por sua mãe.
Samuel sabia que ela não viria.
Ignorando os próprios pensamentos, começou a acompanhar Ícaro nos berros.
Mas Samuel sabia que ela não viria.
A garganta secou e o calor cresceu.
Sufocava.
Olhou para a parede em diagonal e acima da descarga estava a janela.
É muito alto para pular, mas posso fazer entrar mais ar, pensou.
Abriu as gavetas debaixo da pia procurando algo duro para arremessar no vidro. Entre caixas de remédio, lâminas de barbear, papel higiênico e toalhas, um secador de cabelo foi a ferramenta mais apropriada que encontrou.
Subiu na borda da privada enquanto Ícaro esperneava.
Bateu.
Nada.
O que está fazendo, perguntou o menor.
Explicou suas intenções.
Foi lembrado de que apanhou de cinta depois de estourar a janela do quarto com uma bola de futebol.
Não se importou.
Bateu.
O aparelho rachou.
Samuel pensou em desistir, mas olhou o caçula deitado: chorava tanto que o nariz escorria, verde e pegajoso. Chicoteava as pernas no chão e puxava os cabelos de medo.
Será que aos quatro anos temos consciência suficiente para saber que estamos prestes a morrer?
Tentando eliminar idéias ruins da cabeça, Samuel golpeou novamente o vitrô.
A parte superior do aparelho abriu de vez. Parafusos e pedaços de plásticos pularam para os lados.
Observando a fresta que havia entre as vidraças, Samuel foi encarado pelos olhos amarelos de seu gato sentado no galho da árvore.
Ao menos, Bu conseguiu escapar, pensou.
Fitou o animal lamber tranquilamente os pêlos e sentiu inveja do felino: ele, sem dificuldades, passaria por entre as grades de segurança da janela.
Acordou dos devaneios com o som de algo caindo no interior da casa.
Segurando o aparelho pela parte quebrada, começou a desferir golpes com o cabo.
Quatro pancadas e o estrondo de cacos partidos.
Desceu da privada e constatou que a fumaça estava mais intensa e o calor mais forte: trabalho em vão.
Cansado de chamar pela mãe, Ícaro cobrava atitudes do irmão.
Faça alguma coisa, dizia.
Na inocência, o mais velho abriu a torneira e de lá ainda saía água. Lembrou-se da história do Pássaro e o Dedal que ouviu na escola.
Resolveu fazer algo parecido.
Deixou a água escorrendo e foi abrir a porta do cômodo.
Faça alguma coisa, dizia o mais novo.
Encostou na maçaneta e queimou a mão.
Agitou os dedos no ar para aliviar a dor. Seria impossível abrir a porta agora.
Uma lágrima escorreu.
Faça alguma coisa, dizia o mais novo.
Outra lágrima escorreu.
Vencido e sem saber como agir, Samuel sentou-se na privada e olhou a fumaça entrando pelo vão da porta.
Começou a observar o nariz sujo do irmão e sentiu os olhos tremerem: pranto de dor causado pela impotência diante de algo inevitável.
Então, surgiu a idéia.
- Ícaro?
- Sim?
- Você confia em mim?
- Por que?
- Confia em mim?
- Confio.
Aproximou-se do irmão, deitou-se ao seu lado e o abraçou forte.
Disse que queria que Ícaro fechasse seus olhos.
Ele obedeceu.
Já lhe contei certa vez que eu era o Senhor do Tempo, perguntou.
Não, não havia contado.
- Pois bem, então, fique sabendo que sou o Senhor do Tempo e vou acabar com esse fogo todo.
- Enlouqueceu?
- Não, juro a você. Faça-me o favor de não abrir os olhos, tudo bem?
- Não.
- Não quer que o incêndio acabe?
- Quero.
- Então, não abra os olhos em hipótese alguma.
Sem entender, o caçula assentiu.
Samuel respirou fundo. Com um tom grave na voz, ordenou que as nuvens obedecessem a ele, o Senhor do Tempo, e começassem uma tempestade forte.
Estralou os dedos.
Trovões romperam no ar e três segundos depois caíram os primeiros pingos no telhado.
Viu um sorriso aparecer no rosto do irmão conforme a chuva fortalecia-se lá fora.
- Está chovendo, Samuel!
- Sim, está. Não lhe disse que eu era o Senhor do Tempo?
Colocou a mão sobre os olhos do pequeno para que evitasse abri-los. Com um tom mais grave do que na outra vez, Samuel ordenou aos ventos que, com toda força, começassem a correr levando tudo o que encontrasse no caminho.
Assoprou.
Uma pequena brisa cantou na janela quebrada. Um frio tocou o rosto dos meninos causando uma leve cócega.
Eu quero mais forte, gritou.
Respirou fundo e assoprou todo ar que havia em seus pulmões.
Veio o vendaval esperado.
O gato miou assustado e as folhas nas árvores balançaram-se com violência. As paredes da casa começaram a tremer: parecia que fossem ruir.
A primeira telha caiu no chão.
Sem muito demorar, veio a segunda;
A terceira;
E as demais.
Tudo tremia. Outro forte balançar de paredes e o telhado foi arrancado para longe.
Os pingos da chuva tocaram as faces dos meninos.
Iniciou-se o som do evaporar da água: o fogo foi sendo extinto.
Após sentir-se seguro, o Senhor do Tempo ordenou que toda a chuva e todo o vento cessassem. Feito sua vontade, beijou a testa do irmão e lhe assegurou que, finalmente, poderia abrir os olhos.
Ícaro, encantado, não acreditava no que via: o incêndio, de fato, foi exterminado. Ao redor, restavam apenas carvão e poças de água.
O que é você, anjo ou deus, perguntou com os olhos brilhantes ao seu irmão.
- Já disse, Ícaro, sou apenas o Senhor do Tempo!
Levantaram-se.
De mãos dadas, andaram em direção ao quintal enquanto o fogo começou a devorar seus pequenos corpos desfalecidos no chão do banheiro.

Ansiosas palavras

Palavras profanas provocadamente
Proferidas pelo prazer
Exageradamente exorbitadas
Em extremo excesso e eloqüência

Tentadoramente tatuadas
Tendo torrentes traduções
Trabalhosamente traçadas
Tateando tua tranca

Carenciadas carícias confundidas
Com contundantes coxas
Confidenciadas com carinho
Calando contidas calças

Audaciosas ascendências
Aspirando alucinar
A almejada amante
Ao alimentar-se ante à

Ânsia
Aumentada ânsia
Ânsia aumentada
Ânsia, ânsia, ââânsia!

Do mesmo rio

Quantos dias se foram por entre esses sinuosos rios que correm e se arrastam, que amam e que torturam. Por este rio que é tão só e tão sublime, tão suave e que nikofuji retrata pelo olhar simples, humilde e teimoso. Um olhar profundo escuro, que escorre segredo e teimosia numa quarta feira mais ou menos quente: Não tão quente, mas digna de um mergulho. Longe do caótico ritmo dos monofônicos timbres das máquinas, se despiu de toda a fumaça que exalavam as aborrecidas chaminés. Nu, imerso numa água que também não é pura, mas que traz consigo a inocência de quem não machuca, sem ser antes desafiada.
Um pé após o outro, respeitando a calma que tinha o rio naquelas cinco horas, e os pelos, de arrepio sentiam já um pouco do frio que passaram por aquelas águas na noite. O mais difícil, mergulhar o tronco, visto que as pernas finas já se afogavam no solo movediço destes rios selvagens, e mais ou menos rápido o corpo já estava por completo imerso na densidade gelada daquele rio tão azul escuro que não se via fundo. Finalmente a apreensão de sozinho mergulhar numa quarta feira brava que ficava cada vez mais mansa e azul, se foi.
Se Niko fosse uma cor, seria azul, se fosse um animal, provavelmente, ah..., nunca tinha pensado em ser um animal, se fosse uma planta (quantas bobeiras nos atormentam quando nos esforçamos pra não pensar em coisa alguma.), mas era como se por debaixo d’água sua mente também se transbordasse desta mesma água, e os pensamentos não mais obedientes, como de costume, seguiam correndo sem ordem, num fluxo desordenado e azul. O corpo pelado, sendo lavado pelo rio, sem destino sem rotinas, num suave flutuar, sem deveres de casa nem provas semestrais. Pelo menos nesta quarta, mais vale ser molhado que vestido.
Uma música, que não retorne nunca aos refrões, e Niko fechava seus olhos, repetindo o movimento exaustivamente repetido ao ver sua mão boiando nas piscinas por todos esses calejados dezesseis anos. Flutuar pelas ondas e marolas, deixando a memória, como uma aquarela se diluir nessa água, agora um pouco mais marejada. Os tênis já haviam ficado nas franjas dos rios, o uniforme já não mais fazia parte de nenhuma parte de Niko, As sensações que sentia na correnteza não foram tão fortes para descolar uma pálpebra da outra, e o corpo pequeno perante o movimento intenso do rio começava a parecer sujeito a todas as vontades do azul, sujeito a qualquer vontade desse, que mesmo assim parecia terno no trato com o corpo.
Quando, já satisfeito com aquela paz que o rio lhe trazia, Niko preguicosamente abriu seus olhos molhados, e se viu numa velocidade, relativamente alta boiando correnteza abaixo, e perguntou: Não se canse desta dança!


O rio então respondia: Qualquer dança que seja livre é digna de estourar encostas e barragens

19 de fevereiro de 2009

E se o diabo pudesse chorar?

E se o diabo pudesse chorar?
Desde criança, as coisas não davam certo para mim.
Eu não sabia o porquê.
Sempre tive grande amor pelos animais, mas em determinada época de minha vida afastei-me deles. Qualquer bicho que parava em minhas mãos, morria.
Aos seis anos, ganhei Laica, um filhote de pastor alemão. Morreu atropelada por uma van em minha frente. Triste, chorei. Meu pai foi a uma loja, semanas depois, e me presenteou com um gato.
Chamei-o de Pipoca.
Seis semanas mais tarde, foi estraçalhado pelo rottweiler do vizinho.
Até os doze anos, passaram por minha casa dezoito gatos, doze cães, seis periquitos e nenhum peixe, porque os achava chatos demais.
Todos morreram antes de tornarem-se adultos.
A partir do momento que me apaixonei pela primeira vez foi que comecei a notar como tudo dava errado para mim.
Nunca tive sorte com as mulheres, que fique claro. Até minha barba começar a crescer, porém, muitas delas me achavam bonito.
Maísa foi a primeira a me declarar amor.
Saindo da escola, a convidei para um sorvete. Faltando poucos quarteirões para chegarmos ao local de destino, joguei-a contra a parede e beijei seus lábios. Meu coração disparou, quase desmaiei. Machuquei toda a boca dela com mordidas, mais creio ser por falta de prática na arte da paixão.
No segundo encontro, no escuro do cinema, senti um forte gosto de sangue na boca. Ela correu ao banheiro e, sem entender, fui atrás. Ao vê-la novamente, percebi que faltava um pedaço de seu lábio inferior.
Na escola, apelidaram-me de Canibal. As meninas passaram a me repugnar.
Por sorte, meu pai foi empregado em uma cidade muito longe daquela em que morava. Voltei a ser desejado pelo sexo oposto.
Lilian também teve os lábios arrancados;
Quica perdeu os pais em um grave acidente logo após nosso primeiro beijo, nunca mais a vi;
Com Maísa, uma outra, passei mal e vomitei em seu colo.
Acreditei, então, que o amor não era algo em que eu daria certo.
Abri os braços em frente a um espelho e notei algo cinza crescendo em meu sovaco. Não tive mais paz com os pêlos. Meu braço foi se aveludando e em minha barriga surgiram os primeiros riscos pretos abaixo do umbigo.
A barba ocupou todo meu queixo meses mais tarde. Negra, grossa e dura. Enquanto meninos de minha idade conservavam uma pele angelical, a minha passou a ter uma tonalidade azulada. Não demorou para ter sentido a necessidade de barbear-me todos os dias. Sentia-me asqueroso.
No meu aniversário de dezoito anos, meus pais morreram. Foram buscar meu bolo de aniversário em uma confeitaria quando um homem armado os abordou no sinal. Pediu para que descessem do carro e, sem motivo aparente, executou minha mãe, e, depois, meu pai. Levou o carro embora, mais o abandonou três quarteirões adiante, sem nada furtado. Fugiu e nunca foi preso.
Passei a viver com minha avó materna, viúva e sem filhos vivos.
Pensando nas coisas que me ocorreram ao longo da vida, comentei que era uma pessoa sem sorte.
Não fale besteiras, disse-me a velha, por acaso não tem o que comer ou te falta saúde?
Não retruquei.
Comecei a odiá-la por não entender minha dor.
Cento e oitenta dias passados e foi à vez dela ir embora.
Completei duzentos e vinte e oito meses de vida e ainda não havia experimentado o corpo de uma mulher. Sempre ficava calado quando o sexo era assunto entre os amigos. Descobriram minha situação e acabaram por se sensibilizar.
Marco Aurélio me levou a um bordel, numa sexta-feira de junho. Garantiu que pagaria tudo. Escolhi a ruiva e com ela entrei no quarto.
Disse-me, assim como devia dizer a todos os clientes, que eu havia sido o melhor parceiro em toda sua vida. Sabia que a mim não mentia: teve um ataque cardíaco. Morreu respirando com dificuldades e espumando.
Apelidaram-me de “O Máquina” no trabalho. Achei a situação trágica demais para brincadeiras.
Observava-me no espelho e via que os pêlos se espalhavam ainda mais por meu tronco. Em meu peito, brotavam filetes cada vez mais negros.
Percebi que uma faxineira do trabalho olhava-me com desejo. Toda vez que passava por ela, seus olhos insinuavam malícias e pecado.
Sonhei, noites seguidas, que consumia seu corpo na mesa de meu escritório. Acordava com um sentimento de culpa. Ela era casada, mãe de filhos.
Procurava um documento nos registros quando ela entrou para limpar o pequeno cômodo. Olhamos fundo nos olhos. Não precisei de palavras para tirar sua calça.
Meia hora depois, morreu espumando e com dificuldades de respirar. Fugi antes que me vissem ao lado do cadáver.
Comecei a temer qualquer relacionamento com mulheres. Tentando ficar mais feio, deixei a barbicha crescer. Apelidaram-me, pois bem, de Caprino.
Foi com pesar que recebi a notícia de que, se caso quisesse continuar a trabalhar na repartição, teria de me barbear.
Parece até mesmo um animal dos mais sujos, berrou o chefe na frente de todos.
Era esta mesmo a intenção, ele nunca entenderia.
Não quis correr o risco de perder meu trabalho, apesar de insatisfeito.
Passei a odiá-lo intensamente pela imposição. O sentimento durou pouco, pois o patrão teve uma morte dolorosa quarenta e duas horas depois do barbear.
Para substituí-lo, promoveram Adão. Um coice na boca do meu estômago, pois o odiava. Rico maldito que nasceu com sorte e beleza, tudo que nunca tive. Invejava-o muito: moreno, forte, atlético, e, agora, importante. Conquistaria muito mais mulheres do que já era capaz anteriormente. Além de que, podia usufruir do amor sem que matasse sua parceira.
Para comemorar o novo cargo, fez um churrasco para os funcionários homens. Fui chamado. Contrataram meia dúzia de garotas para fazer apresentações eróticas. No final, o espírito de Baco tomou conta da casa. Bêbado, me envolvi com uma loira. Acordei com ela morta na cama.
O trauma foi tão forte que decidi não mais sair de casa. Quis apodrecer: devorava o que encontrava no armário e geladeira mesmo sem estar com fome.
O telefone tocou uma semana inteira. Queriam que eu voltasse à labuta. Não cedi aos pedidos. Na sexta-feira, demitiram-me com palavrões e alcunhas de preguiçoso.
Em meu peito, os pêlos subiam ao redor dos mamilos e formavam uma figura estranha, porém, inominável.
Havia engordado vinte e quatro quilos e meu dinheiro se esgotara. Liguei a um primo evangélico para pedir uma quantia emprestada. Confessou estar preocupado comigo, havia desaparecido. Depois de exacerbados momentos sentimentais, declarou dar-me o quanto precisasse, desde que fosse até sua casa buscar o cheque.
Quase desisti. Não desejava sair de meu lar. Lembrando dos doces que poderia comprar, porém, aceitei.
Entregou-me seiscentos reais impressionado com meu estado físico. Dizia nunca ter me visto tão mal cuidado.
Exala desgraça e maldição, senti repugno por parte dele.
Minha vaidade foi ferida.
Olhando-me no espelho, decidi mudar. Fiquei pelado e encarei meu reflexo. Analisei cada parte de meu corpo, cada movimento. Fitei fundo meus próprios olhos, sorri, e senti-me confiante para mudar.
Neste dia, percebi que os pêlos, juntos com meus mamilos vermelhos, formavam a face de um lobo por todo meu tronco.
Senti-me mais forte.
Emagreci. Antes de perder peso, entretanto, arrumei outro labor.
Meio ano de paz com a sorte e sucesso.
Na hora do almoço, encontrei Adão no restaurante. Ele não me viu. Estava entretido demais na conversa com a estagiária adolescente dele. Senti que mantinham relações ao término do expediente.
Sentei-me em um ponto longe, porém estratégico: fiquei observando o casal. Pedi a comida, mais a deixei intacta no prato. Tremia, meu corpo todo estava em fúria. Perguntava-me a razão de eu não ser tão bem sucedido quanto Adão.
Pedi uma cerveja que engoli em goles grandes.
Também queria sucesso nos negócios.
Também queria sucesso no amor.
Paguei a conta e cuspi no chão quando me aproximei da mesa de meu ex-patrão. Prometi a mim que seria melhor que ele.
Naquela noite, resolvi ir a um cabaré. Estava decidido a treinar meu desempenho sexual.
Um dia, as mulheres irão-me comparar a Adão e, por unanimidade, dirão que sou muito melhor que ele, pensei.
Com fúria no peito, escolhi a mulher que aparentava ter menos idade. Cabelos lisos, sardas no rosto, seios grandes, como a estagiária.
Em dez minutos, olhava-me com olhos brilhantes, boquiaberta. Ofegava.
Perguntei se havia algum problema.
- Já te disseram que é fantástico?
- Não.
- Foi a primeira vez em que realmente senti prazer com um cliente.
- É nova no ramo, somente por isso.
A respiração ficou mais pesada e tensa. Os olhos, antes brilhantes, adquiriram uma expressão vaga e distante. As pernas começaram a se movimentar em desespero. Veio a espuma na boca e foi-se embora a vida.
Senti mais prazer em assistir a cena do que na própria relação.
Chamei os seguranças na casa e simulei desespero. Até ser liberado, tive de agüentar meretrizes chamando-me de assassino na delegacia.
Fui a outro bordel.
A de cabelinho curto fingia ser a mais assanhada. Faleceu com uma expressão de desespero que me impressionou. Deixei o dinheiro na cômoda e fugi pela janela.
Arquitetei um plano e economizei certa quantia. Esperei que as mortes misteriosas saíssem das conversas de bar para voltar a agir.
Por três sextas-feiras seguidas, três mulheres morreram ao término do programa comigo. Uma quarta foi salva porque, no almoço do último dia do mês, encontrei-me com um antigo colega de trabalho.
Adão irá se casar, disse-me com alegria.
Lembrei-me da estagiária. Era ela a noiva.
Aquele homem não tinha méritos nenhum por seu sucesso. Foi tão longe apenas por ter nascido com sorte, nada mais.
Por que ele merecia ser feliz e eu não?
O que fiz de errado?
Uma fúria de guerra apoderou-se de mim.
Por que o odeio tanto?
Lembrei dos momentos de dores que vivi. Ele é o meu oposto, somente por isso o detesto.
Não voltei para completar meu expediente. Adão tinha que sofrer e não conseguia pensar em outra coisa.
Vida injusta é esta em que só poucos são desgraçados.
Bufava ar quente. Destruí vidros de carros estacionados na rua e chutei todos os cães que reviravam lixos. Sentia-me fora do corpo e assim queria estar.
Ele não é mais digno do amor que eu, pensei.
Um senhor veio me repreender e o espanquei até sentir um golpe na nuca. O policial que fazia sua ronda na região havia-me socado com o cassetete. Roubei-lhe a arma e o feri nos olhos. Seu colega de viatura disparou o revólver, mas eu já havia sumido.
Adão tinha que sofrer.
Fui ao local de meu antigo trabalho.
Subi os lances da escada.
Atravessei toda a repartição e cheguei até a cozinha. Sabia que estariam lá. Tomavam café, rindo, felizes, futuros recém-casados
Arranhei o rosto da mulher de orelha a orelha. Puxei-lhe os cabelos até sair tufos de fios. Segurei seu pescoço e pressionei com força. Fitava fundo os olhos do noivo paralisado de medo. Joguei o corpo no chão e ri.
Em casa, quebrei todas as janelas e móveis. Espalhei álcool pelos cômodos e ateei fogo. Rasguei minha roupa com os dentes, mordendo-me.
Era eu o ódio.
Destruía a privada quando pela última vez mirei-me espelho.
Havia entendido tudo.
O desenho formado pelos meus pêlos e mamilos não era da face de um lobo, mas sim da face do próprio Demônio. Estava lá, sempre, de olhos vermelhos e rosto sombrio, cabeludo. Ria.
Aquele diabo cresceu dentro de mim.
Vi, então, todo o sofrimento e morte que dei a aqueles que estavam ao meu redor. Desde meus cães, gatos e pássaros, até meus parentes e prostitutas.
Sem saber, foi tudo por minha culpa.
Era eu um Diabo também.
Desgraçava a presença daquele que ao meu lado se encontrava.
Havia compreendido tudo, finalmente.
Um amargor tomou conta de minha boca e dela saíram mais pêlos.
Havia compreendido tudo, finalmente.
Chorei.
O fogo tragou toda a casa e transformou-a em meu próprio inferno. Ainda em prantos, fui consumido pelas chamas.

Foi quando numa sexta.

Foi quando numa sexta, eu resolvi sair de minha casa, que havia se tornado um tanto quanto insuportável, não pelas pessoas que ali viviam, mas pelas paredes que estavam se tornando cada vez mais espessas. Tudo em minha casa tinha e me lembrava muito eu. O que encontrei fora de casa foi, infelizmente, desconforto: Eu agora era o próprio desconforto a não ser pelo fato de que isso me incitava a procurar um lugar onde me sentisse acolhido pelos braços da segurança.
Pareceram-me confortáveis os bares, mas eu não era tão boêmio, procurei o conforto então nos livros, mas não achei um autor compatível com o meu estado de ânimo, procurei nas ruas do centro da cidade, nas pizzarias, nas danceterias mais refinadas, nos psicólogos mais renomados, nos teatros, nas universidades, nas casas de mulheres-mercadorias que ainda guardavam em si um sentimentalismo puro, nas reuniões familiares, nos velórios e nos concertos, nas padarias e avós.
O tempo urge, e não espera a boa vontade do corpo em se completar em um lugar confortável, e meus dezoito anos me exigiam um retrato para o alistamento, uma foto 3x4. Depois de aceitar o preço, fui enxotado num cubículo branco que cheirava nostalgia, numa pose não tão natural, engessado, sério e um tanto embaraçado. Veio o click, com flashes atordoantes. O fotógrafo assustado disse: “ué, estranho.”, paguei, peguei as fotos, curioso fui ver meu auto-retrato. Nele só havia paredes brancas, e por mais oco que estivesse eu naquele momento, não havia ainda, me transformado num vampiro.
Já não havia em mim um pouco de dor, nem mesmo uma sensação agradável. O que havia dentro de mim era cada vez mais vago, eu me esvaziava a cada dia e na procura frustrada por conforto deixei de notar que lentamente, quase que de modo imperceptível (talvez pelo fato de que minha percepção já tivesse de malas prontas) meus dedos estavam menores e meu cabelo havia se perdido nesse caminho, meus joelhos estavam tocando o chão e foi de tal modo, o desaparecimento, que quando minha cabeça já rolava no sofá percebi que eu estava sumindo. Eu não mais estava lá

Quem sou eu

Minha foto
tee-box
O dezenove barra dez é o meio que encontramos para circular nossas idéias por entre os mais diversos espaços sob a desculpa de estarmos fazendo arte. Pretendemos ser uma ponte entre a vontade de escrever e o desejo de ser lido, entre a imaginação e a escrita. Somos todos diretores, autores, apreciadores e críticos, porém nunca nesta mesma ordem. É nosso desejo instigar no leitor a vontade de escrever, a vontade de imprimir nas folhas uma marca peculiar, colorindo com novos tons o que nos define como homens. Não somos os únicos nessa cidade que sonham em ser, um dia, escritores, poetas, cronistas, roteiristas ou o qualquer outra coisa. Caso deseje o mesmo que nós, ou, simplesmente, tenha algo que queira ver circulando por aí, pedimos, por favor, que envie seu texto aos endereços eletrônicos colocados nas nossas últimas páginas. Precisamos que o leitor nos ajude a manter vivo esse veículo e alimente a próxima edição com seus amontoados de palavras. Vemos o dezenove barra dez como o primeiro meio de luta para alcançar nosso grande sonho de vida. Perguntamos a todos vocês se têm interesse em nos acompanhar...