19 de fevereiro de 2009

E se o diabo pudesse chorar?

E se o diabo pudesse chorar?
Desde criança, as coisas não davam certo para mim.
Eu não sabia o porquê.
Sempre tive grande amor pelos animais, mas em determinada época de minha vida afastei-me deles. Qualquer bicho que parava em minhas mãos, morria.
Aos seis anos, ganhei Laica, um filhote de pastor alemão. Morreu atropelada por uma van em minha frente. Triste, chorei. Meu pai foi a uma loja, semanas depois, e me presenteou com um gato.
Chamei-o de Pipoca.
Seis semanas mais tarde, foi estraçalhado pelo rottweiler do vizinho.
Até os doze anos, passaram por minha casa dezoito gatos, doze cães, seis periquitos e nenhum peixe, porque os achava chatos demais.
Todos morreram antes de tornarem-se adultos.
A partir do momento que me apaixonei pela primeira vez foi que comecei a notar como tudo dava errado para mim.
Nunca tive sorte com as mulheres, que fique claro. Até minha barba começar a crescer, porém, muitas delas me achavam bonito.
Maísa foi a primeira a me declarar amor.
Saindo da escola, a convidei para um sorvete. Faltando poucos quarteirões para chegarmos ao local de destino, joguei-a contra a parede e beijei seus lábios. Meu coração disparou, quase desmaiei. Machuquei toda a boca dela com mordidas, mais creio ser por falta de prática na arte da paixão.
No segundo encontro, no escuro do cinema, senti um forte gosto de sangue na boca. Ela correu ao banheiro e, sem entender, fui atrás. Ao vê-la novamente, percebi que faltava um pedaço de seu lábio inferior.
Na escola, apelidaram-me de Canibal. As meninas passaram a me repugnar.
Por sorte, meu pai foi empregado em uma cidade muito longe daquela em que morava. Voltei a ser desejado pelo sexo oposto.
Lilian também teve os lábios arrancados;
Quica perdeu os pais em um grave acidente logo após nosso primeiro beijo, nunca mais a vi;
Com Maísa, uma outra, passei mal e vomitei em seu colo.
Acreditei, então, que o amor não era algo em que eu daria certo.
Abri os braços em frente a um espelho e notei algo cinza crescendo em meu sovaco. Não tive mais paz com os pêlos. Meu braço foi se aveludando e em minha barriga surgiram os primeiros riscos pretos abaixo do umbigo.
A barba ocupou todo meu queixo meses mais tarde. Negra, grossa e dura. Enquanto meninos de minha idade conservavam uma pele angelical, a minha passou a ter uma tonalidade azulada. Não demorou para ter sentido a necessidade de barbear-me todos os dias. Sentia-me asqueroso.
No meu aniversário de dezoito anos, meus pais morreram. Foram buscar meu bolo de aniversário em uma confeitaria quando um homem armado os abordou no sinal. Pediu para que descessem do carro e, sem motivo aparente, executou minha mãe, e, depois, meu pai. Levou o carro embora, mais o abandonou três quarteirões adiante, sem nada furtado. Fugiu e nunca foi preso.
Passei a viver com minha avó materna, viúva e sem filhos vivos.
Pensando nas coisas que me ocorreram ao longo da vida, comentei que era uma pessoa sem sorte.
Não fale besteiras, disse-me a velha, por acaso não tem o que comer ou te falta saúde?
Não retruquei.
Comecei a odiá-la por não entender minha dor.
Cento e oitenta dias passados e foi à vez dela ir embora.
Completei duzentos e vinte e oito meses de vida e ainda não havia experimentado o corpo de uma mulher. Sempre ficava calado quando o sexo era assunto entre os amigos. Descobriram minha situação e acabaram por se sensibilizar.
Marco Aurélio me levou a um bordel, numa sexta-feira de junho. Garantiu que pagaria tudo. Escolhi a ruiva e com ela entrei no quarto.
Disse-me, assim como devia dizer a todos os clientes, que eu havia sido o melhor parceiro em toda sua vida. Sabia que a mim não mentia: teve um ataque cardíaco. Morreu respirando com dificuldades e espumando.
Apelidaram-me de “O Máquina” no trabalho. Achei a situação trágica demais para brincadeiras.
Observava-me no espelho e via que os pêlos se espalhavam ainda mais por meu tronco. Em meu peito, brotavam filetes cada vez mais negros.
Percebi que uma faxineira do trabalho olhava-me com desejo. Toda vez que passava por ela, seus olhos insinuavam malícias e pecado.
Sonhei, noites seguidas, que consumia seu corpo na mesa de meu escritório. Acordava com um sentimento de culpa. Ela era casada, mãe de filhos.
Procurava um documento nos registros quando ela entrou para limpar o pequeno cômodo. Olhamos fundo nos olhos. Não precisei de palavras para tirar sua calça.
Meia hora depois, morreu espumando e com dificuldades de respirar. Fugi antes que me vissem ao lado do cadáver.
Comecei a temer qualquer relacionamento com mulheres. Tentando ficar mais feio, deixei a barbicha crescer. Apelidaram-me, pois bem, de Caprino.
Foi com pesar que recebi a notícia de que, se caso quisesse continuar a trabalhar na repartição, teria de me barbear.
Parece até mesmo um animal dos mais sujos, berrou o chefe na frente de todos.
Era esta mesmo a intenção, ele nunca entenderia.
Não quis correr o risco de perder meu trabalho, apesar de insatisfeito.
Passei a odiá-lo intensamente pela imposição. O sentimento durou pouco, pois o patrão teve uma morte dolorosa quarenta e duas horas depois do barbear.
Para substituí-lo, promoveram Adão. Um coice na boca do meu estômago, pois o odiava. Rico maldito que nasceu com sorte e beleza, tudo que nunca tive. Invejava-o muito: moreno, forte, atlético, e, agora, importante. Conquistaria muito mais mulheres do que já era capaz anteriormente. Além de que, podia usufruir do amor sem que matasse sua parceira.
Para comemorar o novo cargo, fez um churrasco para os funcionários homens. Fui chamado. Contrataram meia dúzia de garotas para fazer apresentações eróticas. No final, o espírito de Baco tomou conta da casa. Bêbado, me envolvi com uma loira. Acordei com ela morta na cama.
O trauma foi tão forte que decidi não mais sair de casa. Quis apodrecer: devorava o que encontrava no armário e geladeira mesmo sem estar com fome.
O telefone tocou uma semana inteira. Queriam que eu voltasse à labuta. Não cedi aos pedidos. Na sexta-feira, demitiram-me com palavrões e alcunhas de preguiçoso.
Em meu peito, os pêlos subiam ao redor dos mamilos e formavam uma figura estranha, porém, inominável.
Havia engordado vinte e quatro quilos e meu dinheiro se esgotara. Liguei a um primo evangélico para pedir uma quantia emprestada. Confessou estar preocupado comigo, havia desaparecido. Depois de exacerbados momentos sentimentais, declarou dar-me o quanto precisasse, desde que fosse até sua casa buscar o cheque.
Quase desisti. Não desejava sair de meu lar. Lembrando dos doces que poderia comprar, porém, aceitei.
Entregou-me seiscentos reais impressionado com meu estado físico. Dizia nunca ter me visto tão mal cuidado.
Exala desgraça e maldição, senti repugno por parte dele.
Minha vaidade foi ferida.
Olhando-me no espelho, decidi mudar. Fiquei pelado e encarei meu reflexo. Analisei cada parte de meu corpo, cada movimento. Fitei fundo meus próprios olhos, sorri, e senti-me confiante para mudar.
Neste dia, percebi que os pêlos, juntos com meus mamilos vermelhos, formavam a face de um lobo por todo meu tronco.
Senti-me mais forte.
Emagreci. Antes de perder peso, entretanto, arrumei outro labor.
Meio ano de paz com a sorte e sucesso.
Na hora do almoço, encontrei Adão no restaurante. Ele não me viu. Estava entretido demais na conversa com a estagiária adolescente dele. Senti que mantinham relações ao término do expediente.
Sentei-me em um ponto longe, porém estratégico: fiquei observando o casal. Pedi a comida, mais a deixei intacta no prato. Tremia, meu corpo todo estava em fúria. Perguntava-me a razão de eu não ser tão bem sucedido quanto Adão.
Pedi uma cerveja que engoli em goles grandes.
Também queria sucesso nos negócios.
Também queria sucesso no amor.
Paguei a conta e cuspi no chão quando me aproximei da mesa de meu ex-patrão. Prometi a mim que seria melhor que ele.
Naquela noite, resolvi ir a um cabaré. Estava decidido a treinar meu desempenho sexual.
Um dia, as mulheres irão-me comparar a Adão e, por unanimidade, dirão que sou muito melhor que ele, pensei.
Com fúria no peito, escolhi a mulher que aparentava ter menos idade. Cabelos lisos, sardas no rosto, seios grandes, como a estagiária.
Em dez minutos, olhava-me com olhos brilhantes, boquiaberta. Ofegava.
Perguntei se havia algum problema.
- Já te disseram que é fantástico?
- Não.
- Foi a primeira vez em que realmente senti prazer com um cliente.
- É nova no ramo, somente por isso.
A respiração ficou mais pesada e tensa. Os olhos, antes brilhantes, adquiriram uma expressão vaga e distante. As pernas começaram a se movimentar em desespero. Veio a espuma na boca e foi-se embora a vida.
Senti mais prazer em assistir a cena do que na própria relação.
Chamei os seguranças na casa e simulei desespero. Até ser liberado, tive de agüentar meretrizes chamando-me de assassino na delegacia.
Fui a outro bordel.
A de cabelinho curto fingia ser a mais assanhada. Faleceu com uma expressão de desespero que me impressionou. Deixei o dinheiro na cômoda e fugi pela janela.
Arquitetei um plano e economizei certa quantia. Esperei que as mortes misteriosas saíssem das conversas de bar para voltar a agir.
Por três sextas-feiras seguidas, três mulheres morreram ao término do programa comigo. Uma quarta foi salva porque, no almoço do último dia do mês, encontrei-me com um antigo colega de trabalho.
Adão irá se casar, disse-me com alegria.
Lembrei-me da estagiária. Era ela a noiva.
Aquele homem não tinha méritos nenhum por seu sucesso. Foi tão longe apenas por ter nascido com sorte, nada mais.
Por que ele merecia ser feliz e eu não?
O que fiz de errado?
Uma fúria de guerra apoderou-se de mim.
Por que o odeio tanto?
Lembrei dos momentos de dores que vivi. Ele é o meu oposto, somente por isso o detesto.
Não voltei para completar meu expediente. Adão tinha que sofrer e não conseguia pensar em outra coisa.
Vida injusta é esta em que só poucos são desgraçados.
Bufava ar quente. Destruí vidros de carros estacionados na rua e chutei todos os cães que reviravam lixos. Sentia-me fora do corpo e assim queria estar.
Ele não é mais digno do amor que eu, pensei.
Um senhor veio me repreender e o espanquei até sentir um golpe na nuca. O policial que fazia sua ronda na região havia-me socado com o cassetete. Roubei-lhe a arma e o feri nos olhos. Seu colega de viatura disparou o revólver, mas eu já havia sumido.
Adão tinha que sofrer.
Fui ao local de meu antigo trabalho.
Subi os lances da escada.
Atravessei toda a repartição e cheguei até a cozinha. Sabia que estariam lá. Tomavam café, rindo, felizes, futuros recém-casados
Arranhei o rosto da mulher de orelha a orelha. Puxei-lhe os cabelos até sair tufos de fios. Segurei seu pescoço e pressionei com força. Fitava fundo os olhos do noivo paralisado de medo. Joguei o corpo no chão e ri.
Em casa, quebrei todas as janelas e móveis. Espalhei álcool pelos cômodos e ateei fogo. Rasguei minha roupa com os dentes, mordendo-me.
Era eu o ódio.
Destruía a privada quando pela última vez mirei-me espelho.
Havia entendido tudo.
O desenho formado pelos meus pêlos e mamilos não era da face de um lobo, mas sim da face do próprio Demônio. Estava lá, sempre, de olhos vermelhos e rosto sombrio, cabeludo. Ria.
Aquele diabo cresceu dentro de mim.
Vi, então, todo o sofrimento e morte que dei a aqueles que estavam ao meu redor. Desde meus cães, gatos e pássaros, até meus parentes e prostitutas.
Sem saber, foi tudo por minha culpa.
Era eu um Diabo também.
Desgraçava a presença daquele que ao meu lado se encontrava.
Havia compreendido tudo, finalmente.
Um amargor tomou conta de minha boca e dela saíram mais pêlos.
Havia compreendido tudo, finalmente.
Chorei.
O fogo tragou toda a casa e transformou-a em meu próprio inferno. Ainda em prantos, fui consumido pelas chamas.

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